GÊNESE

No final do ano de 2011, quando participamos de um festival de teatro com a performance urbana Rounin, tivemos oportunidade de assistir uma peça para o público infantil e consideramos que essa experiência contribuiu (juntamente com duas outras) para o início de nossas pesquisas com crianças. Estávamos no mezanino de um teatro de cerca de 700 lugares e observamos a entrada das crianças, que vinham de algumas escolas da região onde acontecia o evento. As crianças entravam no teatro muito curiosas: correndo entre os bancos, rindo, conversando, nitidamente entusiasmadas pela experiência extracotidiana de sair da escola para ir ao teatro. 

À medida que as crianças (cerca de 700) entravam, a diretora do espetáculo, que estava ao nosso lado no mezanino, pegou o microfone e começou a falar com as crianças de maneira bastante autoritária, pontuando sobre a necessidade de ficarem em silêncio, sentadas à espera do início da peça. Em sua fala, a diretora relacionava a “ordem” e o “silêncio” à noções de boa educação, além de outras pontuações nesses mesmos termos que nos mobilizaram profundamente no sentido negativo.

Saí dali com vários questionamentos: será que se tivessem escolha, todas essas 700 crianças teriam escolhido vir ao teatro? Por que adultos consideram toda experiência teatral algo bom para as crianças? É possível desconsiderar o que acontece com a criança antes e depois da peça: como são recepcionadas, o local que as acolhe, a quantidade de público, as orientações/ordens que recebem dos adultos, quando avaliamos essa experiência como positiva? Como considerar aquilo que a criança percebeu na experiência de ir ao teatro, seja no que pensou, viu, teve desejo de falar? O que significa o silêncio, o riso, o corpo inquieto, o movimento do corpo em busca de melhor visualização, a inquietação da criança durante uma apresentação teatral?

 Saímos do evento com o desejo de iniciar uma pesquisa para uma produção teatral para e com crianças, a partir do estabelecimento de um outro tipo de relação com elas que iniciasse já na produção e criação dramatúrgica e que pudesse se estender até as apresentações. 

O intuito inicial era o de partir do olhar da criança: suas histórias, realidades, percepções de mundo e, para isso, encontrá-las e estar com elas durante um tempo, em um processo de observação e criação conjunta. Não pretendíamos criar algo completamente sem regras, mas diminuir a hierarquia entre artista e público e valorizar os conteúdos que estão presentes nas vozes, corpos e realidade das crianças. Acima de tudo, desejávamos criar um espaço de (com)vivência, escuta e criação poética com elas.

Alguns desses desejos/pensamentos haviam surgido de maneira intuitiva, quando fizemos o projeto piloto Circo Multimídia em agosto do mesmo ano. Pareceu coerente ao grupo o pensamento de que as crianças naturalmente teriam interesse em participar e estar próxima de uma ação poética/teatral e que seria muito potente e original considerar suas vozes (na experiência) como uma rica camada dramatúrgica.

Rounin na Biblioteca Pública

Em 24 de abril de 2012 fomos apresentar a performance Rounin na Biblioteca Pública da cidade de Itajaí, a partir do edital de compra de espetáculos da Fundação Cultural. Foi solicitado a apresentação neste local, para compor a programação da feira do livro que acontecia ali naquela ocasião.

Rounin é uma performance urbana e noturna, que acontecia no início do anoitecer, utilizando recursos de projeção digital em anteparos arquitetônicos, em constante relação com o performer e público. A apresentação na biblioteca foi nossa terceira experiência indoor, e essa mudança significativa de estrutura, cenário e tempo, por si só já era um fator de tensão, pois ocasionava uma grande mudança de movimentação e alcance de atuação do performer, bem como das imagens normalmente projetadas em grandes espaços abertos.

Como Rounin é uma experiência que acontecia a noite, o público que acompanhava a performance era composto, em sua grande maioria, de adultos, transeuntes, trabalhadores saindo de seus trabalhos, ou pessoas que vinham especialmente para acompanhar a performance. Raramente recebíamos crianças nas apresentações a noite, mas nas ocasiões em que este público estava presente, algumas cenas tinham bastante apelo, como a cena do monstro, da perseguição policial e da moeda.

O projeto desta obra teve início no ano e 2007, passando por diversos caminhos, inclusive fora do Brasil, e todo o foco de pesquisa era voltado ao público adulto. Obras como Musashi, artes marciais como Aikidô, estátuas vivas, pessoas em situação de rua, projeção digital e arquitetura urbana compunham as temáticas de interesse pesquisadas, assuntos que surgem de alguma maneira na dramaturgia da performance.

Quando estávamos diante do público de crianças, nossas percepções eram somente considerações afetivas sobre eles ou sobre o festejo e as reações na cena da moeda. Particularmente, acreditava (e ainda acredito) que algumas cenas de Ronin não eram adequadas para crianças, especialmente quando o performer mata acidentalmente, uma senhora ao sair de um elevador, transformando o anteparo numa grande tela vermelha.  Ou quando ele é preso e fica visivelmente atormentado por figuras monstruosas dentro da cadeia.

A apresentação na Biblioteca Pública de Itajaí foi precedida de todos os receios possíveis, tanto no sentido da significativa modificação estrutural, quanto o desconhecimento sobre o público infantil. Atendemos cerca de 70 crianças das séries iniciais e na minha fantasia as crianças ficariam assustadas na cena do monstro e do elevador, e eu não saberia o que fazer caso isso de fato, acontecesse.

Foi muito surpreendente o que aconteceu naquela apresentação: houve uma empatia pelo personagem do Samurai e nas cenas onde as projeções surgiam lentamente, ouve espantamento e ansiedade. Apenas duas crianças choraram um pouco quando surgiu o Samurai, e foram acolhidas pelas professoras ali presentes. As demais, engajaram-se em ajudar o personagem a achar soluções para o ‘acidente no elevador’. Algumas crianças viam na imagem projetada do Samurai um anjo, que guiaria o ator por algum caminho longe do monstro. As crianças buscavam acolher o ator, animá-lo, acordá-lo (na cena onde dorme), orientá-lo, falando para ‘se arrumar’, ‘não desistir’, ‘não tirar a armadura’, ‘chamar um advogado’. Ao final, levantaram-se voluntariamente aplaudindo e gritando “Bravo, bravo!”.         Após esta apresentação e diante das últimas experiências instigantes com crianças, vividas nos últimos meses, nos pareceu apropriado iniciar uma pesquisa com este público, considerando o que havíamos observado.