Eranos Entrevista Clarice Cardell – Teatro para Bebês

Clarice Cardell. Artista, Produtora Cultural, Co-fundadora da Cia La Casa Incierta. Idealizadora do projeto Bebelume. Produtora do Festival Primeiro Olhar – Brasília.


Sandra Coelho. Artista-pesquisadora das infâncias, com incursões em teatro, literatura e artes visuais,  ligada ao PPGAC da UDESC. Membro do Eranos Círculo de Arte. Psicóloga Clínica, Especialista em Psicologia Analítica.


Entrevista concedida em 18/05/2023.


Sandra: Clarice, primeiro gostaria de agradecer a tua disponibilidade para me conceder esta entrevista, que será anexada na minha dissertação de mestrado que estou fazendo dentro do programa PPGAC – UDESC. Eu queria que você falasse um pouco sobre a história do teatro para bebês. Eu sei que você é uma artista, uma atriz brasileira que depois de um tempo foi para a Europa, casou, você e o Carlos Laredo fundaram a companhia La Casa Incierta. Eu queria que você contasse um pouquinho desse início, da tua trajetória no teatro para bebês, tanto no Brasil quanto na Europa…

Clarice: Eu fui pra Espanha em 98, mas eu conheci o teatro para bebês através do meu ex-marido e ex-companheiro Carlos Laredo no ano 2000, que ele fazia um festival chamado Festival Teatralia, que é um dos maiores festivais de teatro da Europa e da Espanha. Até hoje existe, ele não faz mais, mas existe este festival importantíssimo e esse festival estava trazendo pela primeira vez, junto com outro festival, companhias de teatro para bebês, majoritariamente vindas da França e alguma coisa vinda da Itália.Era uma novidade na Espanha naquele momento e eu vi no festival uma apresentação de uma companhia francesa que eu não me lembro exatamente qual era, para um grupo de uma creche com 40 bebês, e eu estava grávida.E quando eu vi aquilo, eu falei, eu quero fazer isso. E aí eu encasquetei que eu queria fazer aquilo. Eu queria fazer aquilo, convenci o Carlos, Aí a gente criou. A partir disso, a gente criou.E depois disso eu comecei a ver outras coisas pra bebê, vi o Laurent Dupont com L´air de l´eau, que é um espetáculo com a Brigitte Lallier histórica de teatro para bebês. O ar da água, chama L´air de l´eau.O Laurent Dupont que é um dos precursores do teatro para bebês no mundo, e a Brigitte Lallier e que é uma cantora lírica, francesa também. Uma das precursoras do teatro para bebês do mundo, e é um espetáculo histórico que estavam os 2 juntos. Eles faziam uma coisa na polaridade do masculino e do feminino, com tubos de bambu. Uma pesquisa sonora muito interessante. Eu vi aquele espetáculo, eu falei, eu quero fazer teatro para bebês. O que eu sempre digo, normalmente a gente começa a fazer teatro para bebês porque a gente vê alguém fazendo teatro para bebês. E fala, eu quero fazer isso! Eu sei que não foi o caso de vocês, que se meteram aí por acaso e falaram meu Deus, o que eu estou fazendo?

Sandra: Mas também na gravidez, não é?

Clarice: Sim, mas assim, muita coisa do que acontece no teatro para bebês surge porque as pessoas vêem teatro para bebês. Eu já ouvi muita gente falando que começou a fazer teatro para bebês, porque viu a gente fazendo teatro para bebês. Então eu acho que o artista tem um processo que vai se multiplicando. Outras pessoas vão vendo a possibilidade desse público tão incrível que é a primeira infância, a partir dessa perspectiva, de que eu não sabia nem que podia. E a partir daí a gente começou o processo do Pupila D’água. A minha filha nasceu e quando a Gabriela tinha 6 meses, a gente estreou Pupila D‘água.

Sandra: O primeiro, então…

Clarice: Foi o primeiro, que foi um dos espetáculos mais importantes do teatro para bebês, com certeza na Espanha e um dos mais importantes na Europa, junto com esse espetáculo mais ou menos o Teatro Paraíso da Espanha fez um espetáculo chamado Os Jardins, alguma coisa assim, e esses 2 espetáculos foram os 2 primeiros espetáculos de teatro para bebês na Espanha. Basicamente, podem ter sido feitas coisas pontuais, mas de pouca relevância. E eles começaram a alavancar um movimento de teatro para bebês na Espanha.Posteriormente a isso. Com o La Casa Incierta, 2 anos depois, a gente montou A Geometria dos Sonhos, que é aquele da foto que você coloca na dissertação. Que também foi outro espetáculo que teve muita repercussão e mais ou menos em 2005, a gente criou em Madrid o Festival Ciclo Rompiendo el Cascarón, que era um festival de teatro só para bebês no centro de Madrid, no Teatro Fernán Gómez. Um teatro importante, que fica na praça de Colón, da prefeitura de Madri, e a gente fazia um festival que era um ciclo de teatro para bebês que durava 4 meses.E posteriormente, a gente como companhia, passou a ser residente nesse teatro, de forma que Madrid passou a ter uma programação de teatro para bebês, de novembro a junho. De todo ano, só parava no verão e esse festival também foi impulsionando muitas companhias a começarem a criar em teatro para bebês e a empurrar um pouco um movimento de teatro para bebês.Paralelamente a isso, na Espanha, em Barcelona, a Eulália Bosch estava criando o Festival El Més Petit de Tots na Catalunha, em Sabadel. Que é o mais pequeno de todos em Catalão, El Més Petit de Tots que também impulsionou esse movimento. Então, paralelamente, com o trabalho em si do La Casa Incierta, junto com o Festival Rompiendo el Cascarón e junto com o movimento que foi se criando na Catalunha da El Més Petit de Tots foi se alavancando um movimento de teatro para bebês na Espanha, que hoje em dia se transformou em algo já muito mais comum e corriqueiro, com muitas companhias que fazem teatro para bebês.O que que acontece? O teatro para bebês é um público, enquanto em outros públicos, as pessoas estão lutando para ter público, o teatro para bebês traz público sempre. Eu poucas vezes na minha vida tive problemas de público com teatro para bebês, que é um problema majoritário nos outros teatros, até mesmo num campo do teatro infantil, as crianças quando vão ficando com 8, 9, 10 anos, elas vão tendo outros planos. Onde realmente os pais têm a necessidade de fazer um programa cultural com as crianças e é mais fácil levá-las é na primeira infância até os 6, 7, 8 anos depois já tem a concorrência dos planos das crianças com suas escolas, com os outras histórias e que isso já não fica tanto assim. Então você vê que no teatro infantil em geral, se você vai no teatro infantil, está cheio de primeira infância no teatro infantil. Só que vendo espetáculos que não foram pensados para a idade deles. Então, quando você faz teatro para bebês, e teatro para bebês é o nome que se deu aqui no Brasil, né? Mas quando você faz teatro para a primeira infância, é normalmente um público que funciona. Então, o que aconteceu na Espanha? Esse movimento que a gente impulsionou, ele acabou gerando um movimento muito do “filão”. Muita gente na Espanha em função dessa demanda que foi surgindo desse movimento que a gente empurrou, ele criou um filão muito diferente do que aconteceu aqui em Brasília.Porque aí o que aconteceu a gente começou esse movimento e desde 2007 a gente começou a vir enquanto a gente ainda morava na Espanha. A gente começou a vir ao Brasil e aí a gente em 2007 vem pela primeira vez no Sesc São Paulo, Sesc Pinheiro, que foi um evento que o Grupo Sobrevento organizou para trazer a gente e que foi um super impacto no Sesc Pinheiros. E a gente veio no FIL – Festival Internacional Intercâmbio de Linguagens no Rio de Janeiro com a Karen Acioly. A primeira vez que a gente traz o Pupila D’água e A Geometria dos Sonhos para os 2 festivais. Então a gente vem e empurra esse movimento. O Danilo, que era o presidente do Sesc, vem com o neto dele assistir a gente no Sesc e o Sesc começa a querer fazer um movimento de teatro para bebês, porque parece uma coisa que vai ser um ‘Bum’ e que acontece. E aí a gente começa a vim todo julho, agosto, porque é quando a gente tem férias na Espanha. Nas nossas férias a gente vem pra cá e começa em 2008, 2009, 2010, principalmente em parceria com o Sesc ou com Festival TIC  em Fortaleza, a trazer o teatro para bebês e começa a empurrar mais ou menos um movimento.

Sandra: Então o Sesc, foi o primeiro que trouxe vocês? O Sesc e o Grupo Sobrevento?

Clarice: Sim, tudo foi produção do Sobrevento.

Sandra: E vocês já se conheciam?

Clarice: Sobrevento, são amigos de outros tempos atrás.

Sandra: Antes do teatro para bebês, vocês já se conheciam?

Clarice: Mais ou menos nessa época, a gente ficou amigo em 2005, mais ou menos, eles vêem a gente e decidem fazer um espetáculo para bebês. A partir do momento que eles nos conhecem, começam a trazer a gente para o Brasil, e começa a criar um movimento, até que, juntos em 2011, a gente faz a primeira edição aqui em Brasília do Festival Primeiro Olhar com a primeira edição, que acontece entre o Sobrevento e La Casa Incierta juntos. Que é a quarta ou quinta vez que a gente vem para o Brasil e que paralelamente a isso, a Sandra e Luiz André fizeram o espetáculo deles, que a gente estreou lá no nosso festival em Madrid, eles estrearam em Madrid.Por isso que a gente tem esse sentimento de 2 companhias de teatro, irmãs e que fazem esse projeto completamente juntos e sempre o Sobrevento faz questão de falar do La Casa Incierta, e a gente faz questão de falar de Sobrevento, porque foi realmente um movimento no Brasil, que surge com impulso do que a gente já tinha construído, mas surge graças à força do Sobrevento, empurrando a gente aqui e a gente empurra eles a criarem para bebês. Estreia eles lá e a gente cria um festival, primeiro olhar numa parceria conjunta. E que vai se desenvolvendo. Entende? A partir daí, em 2013, 2014 a gente vem morar no Brasil.E quando a gente vai morar no Brasil, a gente começa a fazer o Festival Primeiro Olhar em Brasília.E a partir daqui de Brasília, a partir do Festival Primeiro Olhar, a gente começa a empurrar um movimento de teatro para bebês. Como que a gente empurra? Em várias frentes. A gente empurra desde provocar um artista como Zé Regino, que é meu amigo, que fazia teatro. Eu falo, Zé, você devia trabalhar para bebês! Eu para bebês, por que? Experimenta! E ele começa um processo de criar pesquisa no campo da palhaçaria para bebês que é uma pesquisa consistente que ele faz nesse caminho.A gente colabora no plano distrital da primeira infância, que é feito aqui e a gente escreve para a Secretaria de Cultura um capítulo sobre a importância da cultura na primeira infância e lá a gente elabora metas do que o governo do Distrito Federal tem que fazer, que são metas, que é pensar políticas públicas para a primeira infância.  Faz um documento que fica meio numa gaveta, mas o meu atual sócio, Leo Hernandes do BebêLume, neste momento era o diretor do fundo de cultura do Distrito Federal. Eu levo esse documento para ele, e falo, olha não fui eu que falei, é o governo do Distrito Federal que está com essa lei, esse plano. E aí ele começa a botar no edital iniciativas para a primeira infância, e a política pública dando patrocínio de projetos para a primeira infância faz com que companhias de teatro que iam propor projetos para crianças falem, cara, vou propor nesse edital que eu tenho chance. Daí nasce o Achadouros, por exemplo, um espetáculo que foi feito aqui em Brasília para bebês e que circulou bastante, que eram 2 pessoas que não iriam fazer para bebês e em função de um edital de política pública, começam a criar para bebês.

Sandra: Em qual companhia, Clarice?

Clarice: É a Nara Faria e Caísa Tibúrcio. Elas fizeram o espetáculo Achadouro, que é um bom espetáculo para bebês, que elas fizeram a raiz desse movimento de impulsionar, através de uma oficina que a gente faz na UnB. A Cirilla Targeta começa a criar um espetáculo e cria o Coletivo Antônia, o Gabriel Guirá assiste as nossas coisas e começa a criar para bebês. Uma oficina que a gente dá no Festival Primeiro Olhar com Paulo Lameiro, surge a companhia Pssoas e Pssoinhas.  A gente empurra pessoas de uma outra forma, através de oficinas de formação de professores que a gente traz de artistas de referência do mundo para cá, para artistas de Brasília, a gente cria um movimento de Brasília e o Distrito Federal se torna um pólo de criação de artes para a primeira infância. Mas, diferentemente do que a gente tentou fazer na Espanha, a gente criou sim um movimento de teatro para bebês, mas permeado de pessoas que não estão fazendo no feeling mercadológico do filão. E em Brasília a gente consegue fazer um movimento que está muito focado nas pessoas que vêm do teatro, de pesquisa, do teatro físico, do teatro como no espaço de experimentação, em que basicamente tudo o que foi feito em teatro para bebês em Brasília tem esse matiz marcada por alguns preceitos que La Casa Incierta faz como companhia que no mundo não se faz exatamente no sentido de que, antes de iniciar o espetáculo, a gente faz um trabalho cuidadoso da recepção do público, num rigor com a quantidade de público. Do rigor de que  sempre que são as coisas que eu sempre falo no teatro para bebês, tudo é possível no campo da experimentação, você pode fazer tudo o que você quiser, mas tem alguns territórios em que na minha opinião, para um teatro para bebês sério, não são negociáveis, que é a quantidade de público público reduzido 40, 50, 60, 80 no máximo pessoas, e no caso de crianças, no máximo 50, 60 pessoas, e a proximidade do público. Todo mundo que faz teatro para bebês aqui no Distrito Federal tem esse rigor e tem uma preocupação no espaço de recepção de público. E como você recebe esse público e como coloca esse público e como isso faz toda a diferença no teatro para bebês. Eu percebo que isso aqui, todo mundo que faz o teatro, seguiu essa escola, escola que a gente fez e que é uma escola que a gente passou pro Sobrevento, que o Sobrevento passou. E que é curioso como essa matriz nossa e do Sobrevento fez com que a maioria das pessoas que fazem teatro para bebês no Brasil tenham esse cuidado, o que não é exatamente essa mesma realidade, por exemplo, na Espanha, onde a gente fez escola, entende? Mas que lá tem muitas coisas, muito mais até estabelecidas do que aqui porque tem mais políticas públicas nesse sentido e porque tem mais tempo, mas aí esse é o caminho. Aí, La Casa Incierta, voltando só um pouco, que a gente está num Panorama cronológico. La Casa incerta fez Pupila D’água, depois foi Geometria dos Sonhos, depois fez Anda, depois fez Circo em Seco, depois fez uma trilogia de lírica para bebês que foi  A Gruta da Garganta, em la Punta De La Lengua, a Caverna Sonora. Depois a gente fez Café Frágil. E esses espetáculos, eles começaram a rodar o mundo e fizeram muitas coisas, muitas oficinas, porque teve um determinado momento que a gente entendeu que não bastava fazer o trabalho com as crianças, que era importante fazer o trabalho também com os adultos que acompanhavam as crianças e por isso que quando a gente faz projetos em creches sempre, sempre, sempre a gente faz uma oficina com professores antes pra afofar a Terra. Para você botar a semente e não chegar como uma extraterrestre que pousou lá sem as pessoas entenderem as propostas do que a gente está falando. A gente fez muitas oficinas de formação para artistas em São Paulo, em Fortaleza, em João Pessoa, em Salvador e Recife, em Belo Horizonte, em Brasília, para artistas e professores, a gente fez as oficinas, fez projetos interdisciplinares, em que tem um diálogo entre, entre Psicologia, educação. Então a gente foi fazendo esses projetos interdisciplinares até que, em 2019, na pandemia mais ou menos no processo da pandemia La Casa Incierta se dissolve. Ficou O Canto do Medo, que foi o último espetáculo que a gente fez, que é um espetáculo meu, mas que ainda levou o selo do La Casa Incierta, mas era um espetáculo já meu, sem a presença do Carlos. E desde então eu entro no projeto Bebê Lume, que é esse projeto de criação de vídeos para a primeira infância, do audiovisual para a primeira infância e com alguns projetos que estão nascendo. Agora que esse esse território híbrido entre entre audiovisual e entre teatro para a primeira infância que a gente está fazendo, mas que já é uma outra pesquisa, que é uma pesquisa em que eu tento transladar todo esse conhecimento desses 20 anos de experimentação no teatro para bebês, para o campo do audiovisual para bebês. Que é onde eu estou. Mas ainda fazendo coisas para em teatro, porque a gente não larga o teatro, mas essa é a cronologia.

Sandra: Clarice, e esse contato com as creches, essas pesquisas. Como que começou isso? Assim, porque eu sei que vocês têm relação com as creches. Ela é desde sempre? Eu sempre vejo vocês em creches, você faz oficinas antes das apresentações? Como começou isso? Como é que você sentiu que esse era um lugar interessante de estar?

Clarice: O primeiro espetáculo que a gente fez, o Pupila D’água, ele nasce de uma pesquisa de uma creche lá em Madri, em que era uma creche com crianças surdas, de integração, por isso que o Pupila D’água tem todo um  projeto de libras poético que a gente faz, porque ele nasce nesse encontro das crianças.Porque foi uma pesquisa muito fundamentada na questão dessa origem da linguagem, e a gente começou a pesquisar a origem da linguagem. A história é uma história invisível que tem no espetáculo, mas a história de uma menina que não consegue falar, que não consegue expressar os sentimentos até que ela explode emoções numa gota d’água. Basicamente, essa é a storyline do espetáculo, e ele nasce dessa pesquisa em que a gente, muito capitaneada pelo Carlos nesse primeiro momento. Em que é uma pesquisa que ele foi pesquisar também, como surge a linguagem em crianças surdas, como era a questão das crianças surdas e todo esse momento da linguagem, que é um termo que a gente sempre pesquisou muito na trilogia que a gente fez sobre ali no campo da lírica, todos, A Gruta da Garganta, A Caverna Sonora, Na Ponta da Língua, os 3 têm essa pesquisa sobre o que a gente diz que é uma ópera do Balbusseio, né? Balbucio, balbuceio, sempre confunde. É uma ópera do balbucio. Como é que é em português? Mas é a ópera do Balbusseio é  a impossibilidade de se falar que explode na lírica. E essas pesquisas, elas nascem sempre muito na creche, porque na creche? Porque por mais que a gente tivesse os nossos filhos, os nossos filhos são relações muito condicionadas, com as nossas relações com os nossos filhos, e com os filhos das dos outros também. Essa proximidade com a criança próxima, ela sempre está condicionada, né?Na Creche a gente sempre procurava estar perto das crianças no momento do brincar livre. Não do brincar dirigido por uma atividade com as crianças, no momento do brincar livre, simplesmente no processo de observação das crianças, brincando livremente e nesse lugar de observar crianças de 1, 2, 3 anos brincando livremente era um território profundamente inspirador para a nossa criação das dramaturgias. Suzanne Lebeau, nossa grande mestra dramaturga canadense do Teatro Folha Carrossel. Eu fiz uma oficina com ela há muito tempo, que foi uma coisa fundadora para mim, que era dramaturgia para as infâncias, e ela falava que existem 2 pilares para você, como artista, criar para crianças. O primeiro é você procurar coisas que te atravessam, que de verdade te importam, ou seja, temas que realmente tem a ver com você, como artista que você tem necessidade de falar, sei lá, sobre a morte da minha mãe, sobre o desamparo que eu sinto com o país, sei lá. O tema que a mim, pessoalmente, está me atravessando, como qualquer artista. E depois o segundo Pilar é como isso que te atravessa, como isso dialoga com as crianças? E eu me lembro da pergunta que eu fiz para ela, OK, eu sei me falar, por exemplo, que está me atravessando agora. A angústia da desmatação do planeta Terra, isso fica me angustiando, ou está me apaixonando as cores do céu, é uma coisa que me impressiona, as cores do céu de Brasília é uma coisa que me atravessa, então assim eu sei reconhecer temas que me atravessam como artista, que eu quero falar, mas como eu vou contrastar isso como o mundo das crianças? E a Susane me respondeu: não tem nenhuma outra forma, senão contrastando com elas. No caso, ela que não escreve para bebês, ela escreve para crianças maiores, ela está escrevendo um texto, ela faz um grupo de crianças que estudam com ela. Ela sempre constrói uma forma de diálogo e de escuta das crianças para que essa escuta se reverbere um espetáculo, tem uma legitimidade desse encontro com as crianças. E a nossa forma de fazer isso sempre foi dentro de uma temática, a gente foi na creche observar as crianças, você chega numa sala, a gente sempre fala isso nas nossas oficinas. Você chega numa sala com crianças, você é a novidade, todas as crianças vão em cima de você, se você não interagir com ela, com as crianças, e se elas começam a brincar, brincar com você, você fica lá brincando com elas. Mas se você não interagir com ela, se fica quieto durante um tempo, e não dá muita bola com elas, com o tempo, elas vão desistindo de você e você consegue ficar nesse lugar neutro somente observando.E esse processo de observação é profundamente rico e profundamente inspirador, quando você está num processo criativo de formação de dramaturgia. Então esse é o caminho que a gente fez. Esse é um caminho no processo de criação com as creches, mas quando a gente faz sempre projeto e que eu adoro levar os meus espetáculos para creches e tanto na Espanha como em Madrid, a gente aqui no Brasil a gente tem uma estrutura técnica em que a gente monta um teatrinho dentro das creches, onde a gente vai, onde a gente monta uma caixa preta com equipamento de som e de luz, com uma arquibancada de forma que este outras crianças efetivamente adentrem espaço de um teatro, mesmo que dentro da sua creche. Preservado de toda a poluição visual que uma creche normalmente traz, entende? E levando as crianças para entrada num espaço extraordinário de um espetáculo teatral. A gente faz isso, mas não é suficiente. Só você ir na creche montar esse teatro e trazer as crianças para o teatro, se os adultos que as acompanham não entendem, ou não compartilham, ou não se aproximam da proposta estética que você está levando para as crianças, no caso do La Casa Incierta a gente sempre fugiu completamente de estereótipos infantilistas do que os adultos estão acostumados a achar, que é o que não é pra criança, e isso produz um estranhamento, tanto em pais, como um estranhamento com professores.E para que esse estranhamento seja diluído, e isso não faça com que esse estranhamento faça com que os adultos tenham um rechaço pelo que eles estão vindo, é fundamental um espaço de preparação desses adultos para assistirem, as crianças não precisam ser preparadas. O que a gente fala, as crianças nascem poetas e tem uma capacidade plena de entrar na poesia e de estar destituída de preconceitos do que se é e do que se não se é para crianças. Mas os adultos, eles estão profundamente engessados por uma série de preconceitos, que coloristas que tem que ser coloristas, grifados de uma determinada estética de música de uma determinada estética de temas, completamente condicionados por algo que alguém inventou que isso é para criança e que os adultos tem certeza que isso é. então os nossas oficinas, que a gente faz antes com os professores, elas têm esse intuito de preparar esse terreno para questionar esses professores e, pelo menos falar, permitam se a possibilidade de se guiar pelo olhar das crianças, e ver que toda essa série de arcabouços estereotípicos que vocês criaram no olhar de vocês sobre o que é a arte para crianças não necessariamente tem que ser assim.E aí é quando perguntam para a gente, mas qual é o trabalho pedagógico que vocês fazem com as crianças? E eu digo, eu não tenho nenhuma pretensão de ensinar nada para criança e ser nem um pouco pedagógica com elas, mas com os adultos sim. Fazer essa abertura, dessa destruição de estereótipos, poder deixar pelo menos a pulguinha atrás da orelha para esses adultos, de quem é esse bebê, Quem é essa criança de 1 ou 2 anos de idade de 3 anos, que está do meu lado? E que junto comigo vai assistir um espetáculo que fala sobre toda uma série de de um arcabouço de mitologia simbólicas, profundas, de dramas profundos e que eu percebo que essas crianças estão completamente conectadas com isso e eu não entendo.. Por vezes eu ouvi de adultos, eu não entendi nada desse espetáculo, mas eu acho que eles entenderam.Então tem um trabalho pedagógico com desconstruir. Esse olhar do adulto para a criança, e esse é um trabalho importante que a gente faz em creches pedagogicamente, desconstrução dos olhares dele. É verdade que o trabalho do La Casa Incierta, e atualmente do BebêLume, a gente parte de uma premissa muito Chomskiana. Chomsky fala da gramática generativa do ser, em que ele tem esse entendimento de que a gente nasce com uma gramática, como um magma simbólico da linguagem, em que a gente vem na genética da gente com esse magma, e que a gente num processo cultural do encontro com outro, a gente desperta uma linguagem, mas é uma linguagem que já está inerente no próprio ser. Nós não somos uma página em branco em que o adulto ensina a gente a falar. A gente já nasce um ser de linguagem, já nasce um ser simbólico, já nasce um ser imerso num magma de conhecimentos, num magma de conhecimentos ancestrais que estão escritos na nossa célula e que o processo da cultura simplesmente faz ele aflorar.De uma forma mais profunda, menos profunda, mas a gente nasce partindo dessa premissa, quando a gente faz teatro para bebês, a gente pode sim falar de questões arquetípicas, simbólicas, profundas, que a gente está dialogando com eles e não com formas simplistas, Infantilistas, reducionistas como se as crianças fossem seres que ainda viriam a ser algo e que, portanto, dentro da horizontalidade de poder vertical  do ensino superior que tudo sei, vou falar com a pessoa do ensino infantil ou fundamental, que nada sabe e eu tenho uma possibilidade de explicar ou ensinar alguma coisa pra ela. Eu não tenho esse esse poder, como adulto, o que eu tenho o poder é eu tentar ativar territórios poéticos, simbólico, ricos e tentar me encontrar numa horizontalidade de poder com essas crianças, tendo a certeza de que essas crianças têm espaço de ressonâncias simbólicas, emocionais, mitológicas e nesse lugar de horizontalidade, a gente conversa com eles.  Eu, como artista, não limito a minha capacidade expressiva, simplificando, o que eu faço pra falar com essa criança. Isso não é o caminho.

Sandra: Eu lembro que um dia você falou pra mim, que você como atriz sentia que chegava com as crianças num lugar muito mais profundo do que chegava com os adultos…

Clarice: É, e eu acho, é, que é isso, eu não chego. O que acontece é que  é uma possibilidade de chegar no delicado da vida. Do essencial. Mas não um essencial, porque eu acho que isso a maioria das pessoas que trabalham para bebês tem essa percepção é da capacidade emocional, da essência, da criança, mas sempre com uma premissa de que eu, como adulta, eu tenho que simplificar para poder chegar. Olha, nada contra o simples, porque eu acho que o simples não é o simplório, e o simples é o mais belo que tem na arte. Mas as coisa é simplificada, pois é, é reduzir, e que você pressupõem que as crianças não têm uma capacidade de entendimento, e é aí onde a gente se equivoca grandemente. E que agora que eu to migrando  para o campo do audiovisual, porque nós do campo do teatro, A gente pode até fazer uma coisa reducionista e pode até tá cheio de teatro infantil feito no mundo que não respeita as potencialidades profundas das crianças, mas pelo menos você tem um encontro com as crianças. No audiovisual, as pessoas partem de todos esses estereótipos do que é a criança e ficam lá botando as suas merdas simplistas para as crianças, entende? E sem ter nenhuma ressonância nelas. O privilégio que eu tenho em 20 anos de teatro de bebês foi, caralho, eu vou fazer isso! mas será? vamos tentar… Nossa, eles responderam. nossa eu vou fazer um espetáculo de 40 minutos todo de texto, para tirar essa história de que você não pode fazer espetáculo de texto para bebês e os bebês não vivem no texto, vamos fazer um espetáculo de 40 minutos de texto. Faz e, eles acompanham porque os bebês são seres de linguagem. Eles vivem num mundo de palavras, os bebês amam as palavras e mesmo que eles não entendam exatamente uma palavra. Eles entendem toda a intencionalidade do que eu estou falando e eles vêm acompanhados de adultos que entendem a palavra, se emocionar com a palavra e, ao se emocionar, emocionam os bebês. Entende? Então tem toda essa questão também que a gente vai construindo dessa história, mas só pra dizer que pra finalizar, o que foi a pergunta da questão das creches é que a gente parte dessa premissa de que somos seres de linguagem que nascemos imersos Já desde muito pequeno sim, com  todo um potencial poético de linguagem de arquétipos, de mitologias, nascemos com a cultura inscrita nas nossas células. Entende? E a partir daí, é desse lugar que a gente se comunica com o público. Agora eu não tenho dúvida que um bebê numa creche com quem eu estou falando, mas se ele tem um pai ou um professor que acompanha essa criança e que ficou olhando para você falando, o que que é isso? O que que ela tá falando com meu bebê? Isso é um fator dificultador. Então, teve um determinado momento na companhia que a gente entendeu que para se comunicar nesse nível de profundidade que a gente deseja se comunicar com esse bebê, a gente precisa se comunicar nesse nível de profundidade com esse adulto que acompanha este bebê. Para isso, é necessário chegar neles. Prepará-los para isso. Então, na companhia, o que que a gente faz? A gente quando chega numa creche eu faço uma conversa de 1 hora com os professores, onde mais ou menos eu converso com eles. Isso que eu estou conversando com vocês. Entende? Para pelo menos terem um respeito. Eu não tenho a pretensão de que eu vou mudar o olhar infantilista de uma professora de educação infantil que foi condicionada num olhar pedagógico com a verticalidade de poder em toda uma vida. Eu não tenho essa pretensão de que eu vá mudar ela. A minha pretensão é só botar uma pulguinha atrás da orelha dela.  É nessa recepção do público que eu preciso, dependendo do espetáculo que eu vou trazer. No Festival, por exemplo, na companhia se eu sei que eu vou fazer um espetáculo que tem uma proposta mais atrevida, eu preciso falar com esses pais sobre isso antes. Se tem uma proposta que é uma proposta musical, mais leve, que entrou em outro território. Eu só vou dar algumas consignas para esses pais. Olha, por favor, não condicionem o olhar pro seu filho quando entrarem. Ou seja, cada espetáculo, ele tem uma preparação desse público de pais, de uma forma diferente.No seu (o Caixa Ninho) aqui no Festival tinha a construção que a gente não fez praticamente para público familiar, tinha a construção de um clima e você viu a diferença que fez? Só pela construção de um clima. Se eu estou fazendo um espetáculo do Zé Regino, que é de uma palhaçaria, todos os adultos, com código do palhaço, ah isso é para criança, porque eles acham que isso é para criança. Eu só tenho que condicionar para eles não deixarem as crianças ficarem tão agitadas, tão participativas, para ter um limite de escuta. Se eu tenho espetáculo, que tem uma poética super contundente da Sandra fazendo a peça Terra do Sobrevento, eu preciso fazer uma preparação para esses pais. Porque eles vão entender, para até mesmo para abrir a porta deles. Mas esse espaço de recepção do público é um lugar onde a gente tem um espaço de fazer uma pedagogia com os adultos um espaço muito rico, tanto de preparar os pais, para que o ritual aconteça de uma forma plena, porque um ritual em teatro para bebês é um ritual de um triângulo que tem 3 vértices do tranco, o artista, o bebê e o adulto que acompanha. Se esse adulto, seja o professor ou pai, não acompanham, eles atrapalham.

Sandra: É, com certeza!

Clarice: Então a gente precisa integrar ele para que o rito aconteça. Todos estejam imersos num mesmo ambiente emocional e a energia circule e funcione. Então, como você faz isso no público familiar, tendo essa conversa e preparando. E no público da creche fazendo essa oficina e preparando.

Sandra: Como você percebe as críticas que são feitas, até mesmo dentro do campo artístico sobre o teatro para bebês e para a primeira infância? Críticas sobre o recorte etário, as especificidades, a capacidade dos bebês de ‘compreenderem’ o teatro, etc…

Clarice: Para mim, assim, eu não acho que existem verdades absolutas. Entende? e acho que tudo, tudo dependendo de como é feito, tudo é possível, entende? Não acho que tem verdades absolutas. O que eu acho é o seguinte, existem expressões, por exemplo, na cultura popular, que você vê um espetáculo da cultura popular, você vê desde bebês a velhos, juntos, todas gerações juntas, e é uma categoria livre onde isso pode funcionar perfeitamente. Entende? então, eu não acho que necessariamente os bebês tenham que estar sempre condicionadas a um espaço. Então assim, eu não acho que tenha que ser os bebês têm que ser condicionados a verdade absoluta, sabe agora…Existe uma coisa muito específica, principalmente quando a gente fala da primeiríssima infância, isso de zero a 3 anos. Que se você vai num espetáculo para todo o público livre, até pode até curtir, mas ele não está feito especialmente para esse público, porque esse público demanda especificidade. Como eu falei, a primeira especificidade de todas é essa proximidade, você vai num palco italiano, bota um bebê lá atrás com o público de 500 pessoas. Sinto muito, entende? O seu bebê pode, até porque é muito tranquilo, mas isso não quer dizer que ele vai entrar e vai ter um impacto pra ele. Entende? Dois, normalmente, esses pais de crianças de zero a 3 anos, eles estão privados em sociedade de fazer qualquer convívio cultural em qualquer coisa, porque tudo está interditado para uma mãe, principalmente com um bebê.

Sandra: Exato!

Clarice: Então quando você promove esse espaço, desse encontro de mães com crianças de zero a 3 anos, você inclusive fomenta na nossa sociedade ocidental fragmentada um espaço onde esse coletivo se encontra e onde existe um cuidado para esse bebê, onde cabe um bebê que chora. Eu sinto muito, mas num espetáculo de teatro livre, um bebê chorando atrapalha. Que diga-se de passagem  é o que mais acontece, e assim…

Sandra: O constrangimento, da mãe, do pai, de quem está na plateia…

Clarice: Etc, etc.

Sandra: Exato!

Clarice: Entende? E se a gente vai falar disso num contexto de público escolar, então isso se exacerba. Sinto muito, mas um espetáculo para todas as idades, você leva para uma creche de zero a 3 anos. Ele não vai funcionar, Ele não vai funcionar, entende? ou vai funcionar de uma forma complexa. Então assim. Eu reivindico, sim, o recorte de zero a 3 anos pra  como a gente tem que reivindicar determinadas camadas da sociedade que não são atendidas. A gente tem que fazer a mesma discussão como muitas das cotas. Quando você faz um destaque para um determinado segmento da sociedade. Nesse destaque desse segmento da sociedade, você abre um espaço para que ele seja visto, ele seja respeitado em suas particularidades.Agora, isso impede de que crianças de zero a 3 anos vão outras propostas livres? Não impede. Pode ir, leva, está tendo uma roda de capoeira com crianças de todas as idades. O bebê pode ir. E pode curtir. Agora, são livres para pensarem no que for, e tudo é novo. O que é a questão é o seguinte, o fato do destaque do teatro para bebês no mundo e no Brasil trouxe uma atenção de um discurso político, que é reivindicar que as crianças de zero a 5 anos são cidadãs. E são sujeitos que têm direitos a serem reconhecidos como direitos produtores de cultura. Mas é outro grãozinho que a gente fez que foi a nossa contribuição no Marco da primeira infância, que foi o artigo 12: Toda criança de zero a 5 anos será reconhecida como produtora de cultura e com direito a acesso à cultura.Porque eu me lembro que eu fui num teatro em Madrid apresentar um espetáculo a primeira vez no teatro para bebês, em Torrelodones, em que tinha um cartaz de ferro, assim falando, crianças de zero a 2 anos não são bem vindas ao teatro! 

Sandra: Uau!

Clarice: A maioria das crianças de zero a 3 anos não são bem-vindas, entendeu? Não são bem-vindas. Então, quando você faz um recorte do teatro da primeira infância, você está trazendo, sim, um público que normalmente é excluído das atividades culturais.

Sandra: São invisibilizados. Em alguns dos espaços culturais, que a gente já se apresentou, isso fica muito nítido quando você vai distribuir ou vender ingressos. Os bebês, eles não são contados. Como a gente trabalha para bebês, a gente recepciona bebês, então cada bebê é um indivíduo, claro!. Mas a gente sempre tem que fazer essa conversa com o espaço cultural e dizer que cada bebê recebe ingresso e o adulto recebe outro ingresso. São vários símbolos de invisibilização nestas ocasiões…

Clarice: É o que o Andreis, meu filho, que está fazendo a bilheteria do Festival Primeiro Olhar, então ele faz um processo de reservas e aí sempre se pergunta, mas o bebê paga? Aí o que que eu respondo? Aí eu escrevi um parágrafo que já é oficial, que ele fala sim, no nosso festival o seu filho é tratado como cidadão.

Clarice: E ele é uma pessoa, ele paga e quando alguém apela, aí a gente já fala, mas vem cá, quando você compra fralda? Paga? Quando compra o sapato? Paga. Porque tem uma outra coisa, a indústria dos bebês faz gerar muito imposto. Um pai, foi feito um estudo lá que um pai gasta em média  R$8000,00 por ano, no primeiro ano, só com os gastos básicos de um bebê. Em carrinho, em fralda, em roupa, em sapato, em cremes e tudo isso paga imposto. Eu estou falando isso até pra entrar numa lógica mais economicista, de que os bebês como cidadãos eles pagam impostos.

Sandra: Mas isso também diz respeito ao próprio reconhecimento da arte, na formação de um indivíduo…

Clarice: É isso!

Sandra: Clarice, vocês iniciaram a um tempo atrás uma pesquisa científica sobre as percepções neurológicas das crianças durante as apresentações teatrais, poderia contar como está a pesquisa?

Clarice: Essa pesquisa foi iniciada no La Casa Incerta por mim, pelo Carlos e atualmente o Carlos está tocando ela. Eu não sei como ela está exatamente, mas sei que está sendo desdobrada na Sorbonne.Mas assim, a pesquisa constituiu no seguinte, a gente fez em 3 etapas, a gente fez 28 apresentações nos nossos espetáculos, a gente fez Pupila D´água e Café Frágil, onde tinha um sensor que era como uma pulseirinha, que media como que o arrepio.A gente trouxe 2 neurocientistas, um neurocientista espanhol, um neurocientista suíço.E eles acharam mais efetivo para você tentar medir a emoção das crianças vendo o espetáculo, medir a condutividade da pele, como que o que acontece na temperatura da pele era mais eficiente para medir a emoção do que até mesmo sensor para ver o que acontece no cérebro. A gente tinha 16 sensores, que eram usados em 28 apresentações. A gente fez um recorte entre 1 e 2 anos, 1 e 3 anos eu acho, não me lembro agora, mas fez um recorte específico, mas muitos babavam. Então muitos desses retiraram o sensor. Mas como foram 28 apresentações com 16 sensores, deu uma amostragem muito grande, uma medição muito grande e foi medido bebês, grupos de bebês em creches, eu no palco, alguns adultos que acompanhavam. E aí a gente chegou a números. E a última vez que eu soube assim o primeiro momento, quando foi feito os dados, aí foi feito uma série de dados. Com esses dados, esses bancos de dados. Foi passado para a universidade que estão analisando para construir teorias em cima desses dados. Esses dados estão disponíveis, inclusive se você quiser pesquisá-los, porque é uma pesquisa de campo fortíssima, fale com Carlos, ele tem tudo isso. Ele pode talvez se interessar em compartilhar com você isso, com todos. Eu sei que ele está há 2 anos nessa, nos desdobramentos. Mas as primeiras coisas que tiveram é essa condutividade do gráfico do coletivo dos bebês e comigo. E você via assim, ó. Junto. Isso é muito interessante. Emocionante…

Clarice: O meu arrepio vai junto com o arrepio..

Sandra: Deles!

Sandra: E eu acho importante essas pesquisas, porque muitas pessoas precisam dessa comprovação científica. A última experiência em Brasília que a gente teve no Festival Primeiro Olhar, agora em 2023, onde  numa das apresentações você fez a recepção do Caixa Ninho – instaurando um ‘clima’ antes da entrada no teatro e aquilo alterou completamente a maneira como a apresentação transcorreu. Ou seja, a gente que vive essa relação de proximidade com as crianças já sabe do envolvimento delas nas obras e com os artistas, a gente sabe que elas compreendem aquilo que está sendo proposto e se envolvem. São experiências muito fortes para nós e para eles. E quando você traz a ciência, vejo que é para mostrar/comprovar um tanto dessa experiência, é um outro olhar, e é muito rico também…

Clarice: A gente falava desse projeto, ele serve pra botar na ciência tudo que a gente já tem certeza. Exato, a gente sabe, mas então. Mas é, foi contundente, vê que vai juntar. Depois você vê as crianças, o coletivo das crianças ainda aqui. E o dos adultos, ainda que. De como vibram as crianças, de como vibram os adultos, como se emocionam as crianças, como coletivo, né? Não vou dizer que não tenha um adulto que seja especificamente assim. Como é com o coletivo, entende? Outro, a gente fazia um espetáculo para uma criança sozinha e fazia o espetáculo para criança com um grupo. Como a criança assiste o espetáculo sozinho e com uma criança, assiste um espetáculo em grupo. O poder do grupo.Nisso, então, teve esses dados todos. Esses dados foram levantados e foi um dado muito grande. Entendi, então eu não sei o que neste momento estão  fazendo porque a gente fez primeiro uma análise inicial. No primeiro momento, que foi o que eu acompanhei, e o Carlos fez a primeira exposição em Barcelona num festival e 2 catedráticos massacraram ele, de que isso não era acadêmico. Então ele falou, eu preciso me preparar melhor.

Sandra: Exato. Esse é o caminho da ciência, os dados, os métodos, o rigor… etc…

Clarice: E aí ele saiu para pegar com mais rigor, dados tudo, e eu sei que ele está nos 2 últimos anos imerso nisso e que esse projeto tem um convênio com a Sorbonne. 

Sandra: Clarice, imenso prazer em te ouvir. Poderia ficar muitas horas aqui te ouvindo. Grata pelo tempo e pela disponibilidade!